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sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Graça Pires

Aviso de Asas

Afasto, devagar,

dos ombros da manhã,

a lonjura de cera

implícita nos meus passos

como um aviso de asas.

Já não podem tardar

os dedos que sufocam o medo

nos degraus da noite,

contos de fada

vidrados nos meus pulsos,

ângulo ou curva

De ternuras ausentes,

sinal anterior

a qualquer contradição.

Sou, por instantes,

um sossegado insecto

na flor dos lábios.

 

 


Marginalidade

Subversivamente
o instinto me descomanda.
E a magia inconsciente
do meu corpo
é um jogo clandestino
de gestos sem eco.
Há um ritual divino
nas carícias sensuais
em que me invento.
Nada me torna inocente
dos meus próprios sentidos
quando solto
as linhas marginais
do pensamento
e me seduzo
com gostos proibidos.
Sempre são excessivos os desejos de quem sonha
a vida toda num momento.
A solidão é como o vento.
É nos olhos dos mendigos
que a noite se prolonga por mais tempo.

 


Regresso

Sem mais nem menos
surgiu o passado,
corpo intranquilo
feito de sons semelhantes
aos rostos que amei,
universo donde me excluí,
mar desprovido de cais
na obliquidade dos contrastes.
Esta noite voltei à minha infância:
menina rosada de sonhos nos bolsos,
bailarina de corda na caixinha de som.
À infância regressa-se solitariamente,
subindo um rio sem margens,
até ao lugar em que a nascente
se confunde com o tempo
e o tempo se transforma em espanto.
Procuro, teimosamente,
o rasto da brisa
que me invade o corpo
e apenas sei que o sonho
é um risco inquietante,
quando a solidão tem rosto
e se conhece a posição das estrelas
no âmago das palavras.
Reinicio a infância
no esboço do poema
e circunscrevo o litoral
fragmentado do que sou.
Quem foi que descodificou
o céu no meu olhar
e me deixou na alma
um deus imaginado?
Quando o espaço do sonho é circular
como o tempo das cerejas,
ou da migração dos pássaros
que fendem o infinito,
inadiado é o rito da poesia.
Se eu fosse uma gaivota, dançaria
na proa dos veleiros
até à hipnose
de abraçar a maresia.

Sobre a Loucura

No interior da perturbação, um anjo disforme
partilha comigo o abismo da inocência.
Pelos néons, deciframos a mágoa de um Narciso,
fitando-se num espelho multifacetado.
Passeamos, então, sobre a loucura,
como quando éramos puros
e avançamos por entre o esvoaçar das pombas,
enquanto um labirinto nos subverte a miragem.

Expressão

Dentro da curva inesperada
dos meus braços,
transbordam os gestos
numa espiral imperceptível.
Nas pontas dos meus dedos
se alonga a neblina
que deriva do inverso da loucura
quando prendo nos dentes
a superstição da lua
ou esboço no riso
a cumplicidade dos espelhos
timidamente transparentes
para dizer que só pelo silêncio
se vence o labirinto das palavras
e se mede a solidão.

 

Sonho Exausto

Todos os dias me descubro
personagem de uma fábula
de sílabas e barcos,
entrançando as veias
no joelho da terra
como urzes incensadas no vento.
É quase eterna a raiz,
do corpo ou do mundo,
no tom húmido que agasalha
a semente, quando a erva cortada
se respira no sonho exausto
das árvores disponíveis.
Rodopio no emaranhado das sombras
que tocam os meus pés
e sobrevoo o chão movediço
que brilha nos meus olhos
como uma âncora ou um abraço.
Há um voo incerto na fita negra
enroscada, ao nascer, nos meus cabelos.
Pela vertente da tarde
deixo rolar as emoções,
desmedidamente,
como quem desvenda
os ângulos do improviso,
até à mutação perfeita da tristeza.
Presos ao lugar de nascer
não seremos os mesmos,
porque o grito das nuvens
há-de derreter o barro
que nos prende,
ou transformará em granito
o prolongamento do silêncio.
Conheço o oblíquo movimento dos pássaros
no pulsar perturbado do meu corpo,
quando é de musgo a periferia de um bosque.
Porque sou a significação extraviada do poema
é que os meus olhos se acendem na fragilidade.

 

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