Narciso a Fernando Pessoa
Erram no oiro da tarde as sombras de estas ninfas!
E até onde irá o aroma dos seus gestos
que sei tentam prender meus olhos que, funestos,
sonham um esplendor fatal de pedrarias?
Tarde de tentação! Que estranhas melodias
inquietam o ceo de um rumor ignorado?
Seringe! Tua flauta arrosa de encantado
e sangue de Ilusão esta tarde em demencia
que a legenda recorda; e da immortal essencia
do sonho esta hora antiga exhuma o velho idilio.
Há mãos de festa e sonho em meu deserto exilio!
A Beleza é pra mim, ó ninfas! o segredo
com que Deus me vestiu de Lindo!... Ai, tenho medo
de morrer o que sou às mãos desse desejo
das ninfas; mas está a sombra que não vejo
depois e antes de mim e, se afundo olhar na ancia
de me ver, só me vejo ao collo da Distancia!
Deixai dormir um pouco o ceo nos olhos meus,
eu não os quero abrir antes que os feche, - Deus! -
Ninfas! vós penteais o pavor à janella
da minha alma atravez a hora sombria e bella.
Corôas não serão sobre mim as de flôres
que desfolhais, mas brancos braços de amôres
que abrem nocturnamente e num paiz sem dia...
Sois o sonho de mim ao collo da Alegria!
Vossa presença põe o medo em meu destino.
As taças que entornais do aroma sibillino
da seducção, de tédio enchem o que me déste,
Ó Deus!
Gela meu ser ao sorriso terrest'e
das virgens, que reflecte a tarde a rescender
do olor de Pan!
...E o olhar dóe por não o esconder
do ceo; pois para toda a alma dormir, do bello,
o serafico azul é como um pezadêlo!
Porêm como fugir ao sonho que me faz
como estrangeiro em mim; do bello azul, voraz
a bôca triste, sem côr e de humanas dôres -
como se triunfal e de palidas flôres
da noite, fôssem de um sonho, na hora escultado?
Captivo em mim sou como o dragão que, inviolado,
bebe a scintilação, as s'nora claridade
do cabello sinistro, onde a luz arde e invade
de metalico hallor o nixo onde se acoite...
Vossos cabelos ali! chovem como oiro, à noite!
como fios de horror da teia do mistério...
Do cabello, o esplendor do oiro esteril, é aério
c'mo de arachnideo sonho ou de siderio tecto
cinzelado no olhar - um reflexo de insecto -
no frio vôo num ar de somno e oiro e luto...
Avalanches de tédio em seu cabello escuto!...
**************
Fixo a carne, spectral, como ante inerte frizo
de sombras, a nudez, linha esquecida em riso
sobre chammas, cruel, - Joia dos calafrios! -
Um horror de ónix néva entre os meus dedos frios!
Contemplo o meu destino em mim.
Ninfas, adeus!
Meus gestos irreais tem seculos de Deus!
Na paisagem do ser corre um rio sem fim:
Os meus gestos são como a outra margem de mim...
Cai alma no jardim dos meus sonhos funestos.
É sempre noite lá no fundo dos meus gestos
onde espreita Deus: há luar nas minhas mãos...
As mãos abanam no ar os nossos gestos vãos,
- mundos de sonolencia ardendo em reliquarios:
Joias celestes, vós, meus gestos solitarios!
Por mim divaga o ceo. E morre um diadêma
à minha fronte triste e pensativa, emblêma
da alma palida como um velho pálio ou ouro...
Comtudo que torpor me encosta ao sorvedouro
c'mo esfinge que se inclina ao abysmo e debruça,
a mirar a alma, irmã de um sonho que soluça?
E que um gesto sem nome em minha alma se aclara,
e no Jardim de Deus sou a ideia mais rara!
Meus gestos vão como esta agua sempre correndo
pra a foz do nada; encosto a minha alma, tremendo,
à voz da agua - cristal sonoro do alhear-me!
No novelo de mim a minha ancia a enredar-me.
Ò água sempre triste em seu ir pela parte
da terra que é lívida e c'mo alma que se farte
de sonhos! Não será a minha sombra ausente
um ar vosso - ou serei a imagem da corrente?
Quem descesse o mistério e visse a semelhança
nesse intimo torpor das cousas, onde cansa
essa fuga do tempo em sombra reflectida...
Eu nunca terei dois gestos irmãos na vida,
e se olhasse pra traz t'ria medo de mim...
(Inter-linio de nós no sonho d'alêm-fim)
O que me reflectir roubará meu segredo.
O tempo escorre por nós como alguem com medo
por sobre um muro... Crio olhos de ser distante...
Na alma porei as mãos como por um quadrante...
As mãos são tempo... e tudo é um somno de si...
Miro-me, e não serei a sombra onde vi?...
Ó espelho sem hora! Ó água em somno, lustral,
- espelho horizontal de tédio c'mo um canal
sem ter fundo nem fim. Meu perfil sua dôr!
Só me reflicto e não me vejo no torpor
da agua que abana o tempo... ai, o tempo é a voz
com que se acorda o medo - escultura de nós
na distancia...
Em rumor, na agua, vago demencia
e durmo de Beleza ao collo da Aparencia,
que foge como esta agua e este tempo a correr...
Marulhar de mim no fundo do meu ser...
Só as mãos sabem ter o ar de sonhos contin'os...
Ai! Se o olhar cai nas mãos, desenham-se destinos
como arabescos...
Abro os braços, mas em vão,
e ergo-me de mim com veste de comoção!
Resta-me contemplar pela noite que inundo
de mim, pendido sobre a aparencia do mundo,
Minha sombra exilada esculto-a na doçura!
Perturbo-me de Deus nos braços da Ternura!
Sinto que a minha voz já atravessou Deus!...
Cresço sobre mim, ó noite em delírio!
Adeus!
Imagem de ser bello às mãos da minha infancia.
Sou echo de rumor quebrado na distancia.
Alma da noite antiga incendiada a lavores!
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