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sexta-feira, 23 de maio de 2008

Manuel Alegre

Coração Polar

 

I

Não sei de que cor são os navios

quando naufragam no meio dos teus braços

sei que há um corpo nunca encontrado algures no mar

e que esse corpo vivo é o teu corpo imaterial

a tua promessa nos mastros de todos os veleiros

a ilha perfumada das tuas pernas

o teu ventre de conchas e corais

a gruta onde me esperas

com teus lábios de espuma e de salsugem

os teus naufrágios

e a grande equação do vento e da viagem

onde o acaso floresce com seus espelhos

seus indícios de rosa e descoberta.

Não sei de que cor é essa linha

onde se cruza a lua e a mastreação

mas sei que em cada rua há uma esquina

uma abertura entre a rotina e a maravilha

há uma hora de fogo para o azul

a hora em que te encontro e não te encontro

há um ângulo ao contrário

uma geometria mágica onde tudo pode ser possível

há um mar imaginário aberto em cada página

não me venham dizer que nunca mais

as rotas nascem do desejo

e eu quero o cruzeiro do sul das tuas mãos

quero o teu nome escrito nas marés

nesta cidade onde no sítio mais absurdo

num sentido proibido ou num semáforo

todos os poentes me dizem quem tu és.

II

Ouvi dizer que há um veleiro que saiu do quadro

é ele que vem talvez na nuvem perigosa

esse veleiro desaparecido que somos todos nós.

Da minha janela vejo-o passar no vento sul

outras vezes sentado olhando o ângulo mágico

sinto a sua presença logarítmica

vem num alexandrino de

Cesário Verde

traz a ferragem e a maresia

traz o teu corpo irrepetível

o teu ventre subitamente perpendicular

à recta do horizonte e dos presságios

ou simplesmente a outra margem

o enigma cintilante a florir no cedro em frente

qual é esse país pergunto eu

qual é esse país onde tudo existe e não existe

qual é esse país de onde chega este perfume

este sabor a alga e despedida

esta lágrima só de o pensar e de o sentir.

Não é apenas um lugar físico algures no mapa

é talvez o adjectivo ocidental

o verbo ocidentir

o advérbio ocidentalmente

quem sabe se o substantivo ocidentimento.

Está na palma da mão no nervo no destino

e também no teu corpo aberto ao vento do nordeste

é talvez o teu rosto alegre e triste - esse país

que existe e não

existe.

Eu não sei de que cor são os navios

sei que por vezes

no mais recôndito recanto

no simples agitar de uma cortina

numa corrente de ar

num ritmo

há um brilho súbito de estrela e bússola

uma agulha magnética no pulso

um mar por dentro um mar de dentrop um mar

no pensamento.

SENHORA DAS TEMPESTADES, P. D. QUIXOTE, Lisboa, 1998

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