HAVIA SÉCULOS
Havia séculos          
e eram florestas sobre florestas escritas.           
O canto cantava: era o incêndio do vento           
folheando a memória da terra           
essa maranha de raízes aéreas que nasciam enterrando           
mais fundo as árvores anteriores;           
essa teia nocturna de troncos e lianas, de ramos e folhas,           
nervuras que os versos enervam irrespiráveis;           
esse mapa em relevo lavrado pela paciência da luz           
que atrasando-se recorta           
estas estranhas esculturas do tempo:           
os poemas selvagens           
o máximo excesso de uma rosa aquática e frágil           
sempre a nascer desfiladeiros           
e falésias, fendas, quebradas, ravinas           
vulcões que deflagram em écrans sucessivos           
Havia séculos           
e o cinema dos astros           
acendia ampolas e bagas, campânulas, cápsulas, lâmpadas;           
punha em música a infinita noite dos versos que longamente           
escutam           
aqueles que muito antes ou muito depois vieram ou virão           
até estes anfiteatros que os desertos invadem.           
Havia séculos           
e / atravessando as ruínas dessa terra quente, as páginas           
de água dessa rosa alucinada / havia esse:           
o comum de nós que dos seus se dividindo, verso           
a verso, procura ainda alguém. E assim           
era de novo o início.           
A grande migração das imagens — havia séculos —           
desde há muito começara, desde sempre, já.           
E sem cessar migrávamos nós, inquietos e perdidos           
sem paz e sem lei, sem amos nem destino.
(Migrações do Fogo, Editorial Caminho, Lisboa, 2004)





 


























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