Google
 

quarta-feira, 25 de março de 2009

António Botto

Fui agora mexer nas tuas cartas.


Quem pudesse voltar a acreditar
Nessas palavras doidas e transidas
De febre no delírio da paixão
Que arrastaram num sonho as nossas vidas
Misturando-as na mesma reacção!
Aqui há um juramento além da morte.


Ali dizes que vens logo à noitinha;
E um cheiro a vinho e a fruta – Que doidice!,
Paira naquele quarto de hotel
Onde fiquei três dias e três noites
Esquecido de tudo à tua espera!


Estávamos em Março; Primavera.


Nesta um abraço ainda cinge e aperta
Meu corpo vibrante,
E ali rasga o papel o teu ciúme
Num beijo sensualíssimo de amante.


Além, mais alto, impões que te apareça
– E a noite era uma noite muito fria!


Tanta carta a falar do nosso amor,
Tanta coisa que morre e nem nos deixa
Sequer um vago som de simpatia?


O que eu chorei quando esta recebi,
Esta que diz: «Não volto a procurar-te.»
E atrás de ti segui por toda a parte,
Até que te encontrei; e ardentemente
Voltámos à loucura que findou.


Como é que a gente pode mudar tanto
Sem sentir pela hora que passou
– Por essa hora linda de prazer,
Uma saudade, um pormenor qualquer
– Ficarmos alheados ou suspensos –
Uma tristeza, uma tremura, um ai
Que nasce e vai morrer lá onde a realidade
Começa e não acaba e nunca expira?...


Não leias estes versos. Tudo isto,
Tudo isto, afinal, é só mentira.

Sem comentários: