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segunda-feira, 30 de março de 2009

António Botto

À memória de Fernando Pessoa

Se eu pudesse fazer com que viesses

Todos os dias, como antigamente,

Falar-me nessa lúcida visão -

Estranha, sensualíssima, mordente;

Se eu pudesse contar-te e tu me ouvisses,

Meu pobre e grande e genial artista,

O que tem sido a vida - esta boémia

Coberta de farrapos e de estrelas,

Tristíssima, pedante, e contrafeita,

Desde que estes meus olhos numa névoa

De lágrimas te viram num caixão;

Se eu pudesse, Fernando, e tu me ouvisses,

Voltávamos à mesma: Tu, lá onde

Os astros e as divinas madrugadas

Noivam na luz eterna de um sorriso;

E eu, por aqui, vadio de descrença

Tirando o meu chapéu aos homens de juízo...

Isto por cá vai indo como dantes;

O mesmo arremelgado idiotismo

Nuns senhores que tu já conhecias -

Autênticos patifes bem falantes...

E a mesma intriga: as horas, os minutos,

As noites sempre iguais, os mesmos dias,

Tudo igual! Acordando e adormecendo

Na mesma cor, do mesmo lado, sempre

O mesmo ar e em tudo a mesma posição

De condenados, hirtos, a viver -

Sem estímulo, sem fé, sem convicção...

Poetas, escutai-me. Transformemos

A nossa natural angústia de pensar -

Num cântico de sonho!, e junto dele,

Do camarada raro que lembramos,

Fiquemos uns momentos a cantar!



Poema de Cinza - As Canções de António Botto
Editorial Presença - 1999

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