IDÍDIO
I
Serpeava num vale a estrada tortuosa
Onde íamos os dois bebendo a tarde olente.
Paisagem fresca após a quadra pluviosa,
Um céu de intenso anil com fulvos tons de poente.
Vejo-te inda parar, sorvendo, graciosa,
Os eflúvios do campo, inebriadamente.
Nessa tarde de Março, azul e carinhosa,
A natureza tinha um ar convalescente…
Na memória arquivei todos os pormenores
Desse morrer do dia – a voz dos lavradores
Recolhendo o seu gado, a brisa que se erguera
Trazendo emanações de laranjal florido,
E um melro que embalava o campo adormecido
Na sua doce voz cheia de Primavera…
II
Entrámos já de noite na cidade.
Silêncio, estrelas, uma aragem viva…
Impressionava-me a noite evocativa
De não sei que bafejo de saudade…
Ladravam cães ao longe. Fugitiva,
Uma estrela riscou a imensidade.
Através da nocturna soledade
Tu ias a meu lado pensativa…
Ermas as ruas não rodava um carro.
Eu mergulhara num sonhar bizarro.
Fumava um boticário à sua porta,
Olhando o céu aveludado e belo,
E um clarim, a silêncio, no castelo,
Tristemente apelou na noite morna…
III
Com ar já fatigado e sonolento
No meu braço tu ias apoiada.
Iluminava agora o firmamento
Um minguante ambarino de balada.
Numa viela estreita e mal calçada,
Onde íamos seguindo em passo lento,
Divisava-se a frente enxovalhada
Dum vasto casarão que foi convento.
Que trigueiro e soturno! A olhá-la eu paro.
Tem um ar de viuvez e desamparo
Essa fachada esquálida e vetusta…
E em face desses muros denegridos
Dir-se-ia saturar-se a noite augusta
Dum remember de tempos abolidos…
IV
Sentámo-nos num largo, ao luar divino.
Eu fitava no céu pupilas sonhadoras.
No profundo silêncio um clamoroso sino
Com solene vagar bateu então dez horas.
Depois de acompanhar-te ao ninho onde tu moras,
Erguido num jardim virente e pequenino,
Fiquei a relembrar o teu corpo airoso e fino
E esses olhos de moura, escuros como amoras.
Por longo tempo ainda eu divaguei absorto
Entre prédios sem luz, dum ar soturno e morto,
Ouvindo ao longe o mar num salmo sonolento.
E ao mórbido luar, que ao sono nos impulsa,
A minh’alma bebia essa saudade avulsa
Que dimana da noite assim como o relento…
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