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quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Graça Pires

Dissonâncias

Em cada palavra

definitivamente pronunciada,

há uma lâmina de sombras vermelhas

rasgada no som que respiramos

como um grito de nascer.

Sei o fluir de umas mãos

na minha pele

tatuada de papoilas,

labareda à cabeceira do êxtase,

pântano de garças brancas

no vácuo dos olhos.

A cidade é um presságio de neve

a desfigurar a intimidade do fogo.

Como se fossemos a diagonal

inexpressiva do poema,

improvisamos vértices multicolor

em cada palavra

definitivamente pronunciada.

E somos sós por definição ou cobardia.

 

Insular

Entre o outono e a neve

construí uma ilha

e deixei correr nos meus olhos

a véspera de um rio

e a linguagem absurda das ideias

com identidade suspeita.

Na vertente do corpo

havia um lugar frágil,

onde o cheiro das maçãs

se transformava em orvalho

e as mãos escorregavam

pelo lado morno da voz,

até à represa de um chamamento azul.

Vim do lado sul

de todos os caminhos

que vão dar à sede.

Conheci a turbulência

de um verão intacto

e desenhei a curva

incontornável da lua cheia.

 

De Novembro

Vem de Novembro

esta seiva impetuosa,

onde as raízes da utopia

se perpetuam no sangue,

como um percurso alienado.

Um outono de sede

no interior descuidado das mimosas,

a semente e o parto

das amoras doces,

um carnaval cinzelado

no limite de um balão de vidro.

É noite de morrer

para adiar a vida,

noite polar

à medida da náusea

do que se aceita e recusa,

antinomia do vazio das mãos.

Vem de Novembro

a forma antecipada do prazer

e, por isso, todos os lugares são verdes.

De mãos erguidas

junto das nascentes,

convoco o inacessível

e construo os cenários

da infância que não tive.

Agora vou ser livre

de percorrer o vento

em linha recta,

de receber os afagos

às mãos cheias,

de pintar em todas as paredes

as bonecas de trapos que não fiz.

Agora posso marcar

um percurso feliz

no caminho que leva

à outra margem,

ou fabricar um enredo

onde a minha imagem,

petrificada e bela,

seja sempre o reflexo

do crepúsculo que se extingue.

depois, a vida há-de mover-se

como um vendaval inesperado,

mas nada toldará a limpidez

das lágrimas e da noite,

no ritual quotidiano de estar só.

 

Uma mulher

Um resto de Agosto.

Uma mulher conhece

o caminho da fonte

porque o seu corpo

é um desvio do mar.

Talvez ela nos mostre

um céu líquido

por detrás dos seus ombros.

Não só as mãos morrem

fatigadas de desejo.

Há cascatas de pedra

nos olhos da memória.

 

Mãos

Os nomes que dei às mãos
desenham-se tão perto de mim
que compreendo o desejo sem fantasmas.
Nos dedos principiam as marés
e neles se misturam o reflexo e a máscara
de regressos e errâncias por equacionar.
Os olhos não se fixam na geografia
visível das linhas. Os corpos deixam
de ser um cais. O mar estremece
nos ossos como um sismo.
O primeiro sinal de naufrágio
percebe-se na palma da mão
mesmo quando os barcos
passam ao largo do nosso desalento.
Rente à solidão.
Na trajectória do vazio
onde inventamos os sons.

 

Estigma

Momento a momento, desce sobre mim

o estigma de criança abandonada

em nome da morte e da vida,

exilada sobre as rochas,

com as pálpebras vincadas pelo mar

e cúmplice dos heróis de rosto sombrio.

Do lado disponível da lembrança

persiste, porém, o tom da terra

que as palmeiras dissimulam

no sal das lágrimas e do esperma

quando, deslumbrada, contorno

as arestas macias do prazer,

na saliva e na vertigem,

afluentes de ternura infiltrada no meu corpo.

Ao longe convergem as palavras

no cheiro das laranjas

ou no útero do poema

e voláteis se tornam os meus ombros

na intimidade da chuva que respiro.

Um rio corre sempre sossegado

se não lhe profanarem a nascente.

Por isso sei, nas minhas mãos,

o brilho original de cada sonho.

 

Falei poesia

O mal que me fiz

jogando à cabra-cega

com a vida ,

transformou o ruído

aveludado das guitarras

em pão ázimo,

com que fiz um banquete

partilhado comigo

e com os corvos da noite.

Falei do regresso impossível da alegria,

concebida nas entranhas do sono

e das mutações anímicas

de quem nasce na hora de morrer.

Falei das marés perturbadas,

vermelhas de sargaço

e do hálito salgado da saliva

no limiar do cio e da sede.

Falei do movimento oculto

das areias, ao longo das dunas

e do bailado erótico

de um corpo em rotação

nos sulcos de outro corpo.

Falei do limbo cinzento das cidades,

fraccionadas em fumo e som

e da vertigem lúcida dos cometas

com rumo definitivo.

Falei dos destroços do sossego

nas mãos exiladas de quem chora.

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