Em cada palavra
definitivamente pronunciada,
há uma lâmina de sombras vermelhas
rasgada no som que respiramos
como um grito de nascer.
Sei o fluir de umas mãos
na minha pele
tatuada de papoilas,
labareda à cabeceira do êxtase,
pântano de garças brancas
no vácuo dos olhos.
A cidade é um presságio de neve
a desfigurar a intimidade do fogo.
Como se fossemos a diagonal
inexpressiva do poema,
improvisamos vértices multicolor
em cada palavra
definitivamente pronunciada.
E somos sós por definição ou cobardia.
Entre o outono e a neve
construí uma ilha
e deixei correr nos meus olhos
a véspera de um rio
e a linguagem absurda das ideias
com identidade suspeita.
Na vertente do corpo
havia um lugar frágil,
onde o cheiro das maçãs
se transformava em orvalho
e as mãos escorregavam
pelo lado morno da voz,
até à represa de um chamamento azul.
Vim do lado sul
de todos os caminhos
que vão dar à sede.
Conheci a turbulência
de um verão intacto
e desenhei a curva
incontornável da lua cheia.
Vem de Novembro
esta seiva impetuosa,
onde as raízes da utopia
se perpetuam no sangue,
como um percurso alienado.
Um outono de sede
no interior descuidado das mimosas,
a semente e o parto
das amoras doces,
um carnaval cinzelado
no limite de um balão de vidro.
É noite de morrer
para adiar a vida,
noite polar
à medida da náusea
do que se aceita e recusa,
antinomia do vazio das mãos.
Vem de Novembro
a forma antecipada do prazer
e, por isso, todos os lugares são verdes.
De mãos erguidas
junto das nascentes,
convoco o inacessível
e construo os cenários
da infância que não tive.
Agora vou ser livre
de percorrer o vento
em linha recta,
de receber os afagos
às mãos cheias,
de pintar em todas as paredes
as bonecas de trapos que não fiz.
Agora posso marcar
um percurso feliz
no caminho que leva
à outra margem,
ou fabricar um enredo
onde a minha imagem,
petrificada e bela,
seja sempre o reflexo
do crepúsculo que se extingue.
depois, a vida há-de mover-se
como um vendaval inesperado,
mas nada toldará a limpidez
das lágrimas e da noite,
no ritual quotidiano de estar só.
Um resto de Agosto.
Uma mulher conhece
o caminho da fonte
porque o seu corpo
é um desvio do mar.
Talvez ela nos mostre
um céu líquido
por detrás dos seus ombros.
Não só as mãos morrem
fatigadas de desejo.
Há cascatas de pedra
nos olhos da memória.
Os nomes que dei às mãos
desenham-se tão perto de mim
que compreendo o desejo sem fantasmas.
Nos dedos principiam as marés
e neles se misturam o reflexo e a máscara
de regressos e errâncias por equacionar.
Os olhos não se fixam na geografia
visível das linhas. Os corpos deixam
de ser um cais. O mar estremece
nos ossos como um sismo.
O primeiro sinal de naufrágio
percebe-se na palma da mão
mesmo quando os barcos
passam ao largo do nosso desalento.
Rente à solidão.
Na trajectória do vazio
onde inventamos os sons.
Estigma
Momento a momento, desce sobre mim
o estigma de criança abandonada
em nome da morte e da vida,
exilada sobre as rochas,
com as pálpebras vincadas pelo mar
e cúmplice dos heróis de rosto sombrio.
Do lado disponível da lembrança
persiste, porém, o tom da terra
que as palmeiras dissimulam
no sal das lágrimas e do esperma
quando, deslumbrada, contorno
as arestas macias do prazer,
na saliva e na vertigem,
afluentes de ternura infiltrada no meu corpo.
Ao longe convergem as palavras
no cheiro das laranjas
ou no útero do poema
e voláteis se tornam os meus ombros
na intimidade da chuva que respiro.
Um rio corre sempre sossegado
se não lhe profanarem a nascente.
Por isso sei, nas minhas mãos,
o brilho original de cada sonho.
Falei poesia
O mal que me fiz
jogando à cabra-cega
com a vida ,
transformou o ruído
aveludado das guitarras
em pão ázimo,
com que fiz um banquete
partilhado comigo
e com os corvos da noite.
Falei do regresso impossível da alegria,
concebida nas entranhas do sono
e das mutações anímicas
de quem nasce na hora de morrer.
Falei das marés perturbadas,
vermelhas de sargaço
e do hálito salgado da saliva
no limiar do cio e da sede.
Falei do movimento oculto
das areias, ao longo das dunas
e do bailado erótico
de um corpo em rotação
nos sulcos de outro corpo.
Falei do limbo cinzento das cidades,
fraccionadas em fumo e som
e da vertigem lúcida dos cometas
com rumo definitivo.
Falei dos destroços do sossego
nas mãos exiladas de quem chora.
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