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sábado, 31 de janeiro de 2009

Eduardo Pitta

 

Temos que baste: a pátria à janela
e a vontade na cama.

Nunca me tinhas dito: um quarto assim
— um quarto cheio de nuvens, tapetes
persas, apetites, laliques.

O tecto muito verde, a cama muito
alta, o espelho muito fundo.

Foder-te tudo: a paisagem,
o buraco, a esplêndida tesão.

Ardias devagar.

Cercaram-te então de abetos
por todos os lados.

Houvera ali um rosto
muito belo, mal disfarçado
na teia geométrica
de uma finíssima máscara.

Sulcos de um antigo
ardor.
Tranquilo e arbitrário
desapego.

A luz baixou tanto.
Aquele rosto é
um mapa: um mapa
crivado de cidades saqueadas.

De noite morremos. Um lapso, um
só vislumbre
recuperam-nos do vórtice. O ilu
minado caminho das trevas
absorve-nos. Sobre
vive-nos o conhecimento. Na boca

de Prometeu não foi vão o grito
de Ésquilo.
Atroz sabedoria.
Tudo nos surpreende, desam
parados, nesse langor, nesse corpo
a corpo com o silêncio mais audível.

Estradas muito claras, o desenho nítido
e longas o bastante para o tempo
que sobrava.

O incêndio ficava para depois
para mais tarde
nos dias de aborrecer
o tédio.

Entre o desencanto da escola,
a injúria de alguns, a praia de ao pé de casa,
um Rilke adolescente, as primeiras
exigências do corpo e o ritual

do mah jong, fomos cumprindo
o equivocado itinerário
de uma sobressaltada adolescência colonial.

A noite toda a selva
dissolvendo-te em sândalo
e esquecimento.

Casas, degraus a prumo, águas
despedaçadas. Equilíbrio precário
num fio de luz.

Sob uma lâmina de mica
um veneno espera por nós
em Trieste.

Nunca se deteve nas Escrituras.
Gostava de caminhar ao lado da noite
deter o falcoeiro
guilhotinar a interceptada luz
fazer da sede um vidro de passagem.

Está um rapaz a arder
em cima do muro,
as mãos apaziguadas.
Arde indiferente à neve que o encharca.

Outros foram capazes
de lhe sabotar o corpo,
archote glaciar.
Nunca ninguém apagou esse lume.

Esse mundo acabou,
sobrevive-lhe o eco de
algumas vozes.
O homem que erra de cidade
para cidade
conhece a voracidade dos espelhos
o brilho ácido da cal
o reiterado equívoco das marés.

E sabe, soube sempre
que a casa já lá não está.
Nem a casa nem a memória
que quiseram que tivesse.

Varrido por um sopro insaturável
o olhar vacila, acossado
entre ruínas
e a traficada solidão.

Eu vi o tédio atravessar o tempo
atribulado da infância
e espelhar-se naquele rosto

ainda de menino. A cicuta,
o medo, tanto desamor
submerso na água de olhar.

Não tem memória. É de outros
a vontade, o apelo, a boca
acesa ao interdito. Vertigem

alguma o perturba. Mãos rudes
fixam-lhe o perímetro da pele,
secreto desígnio.

Imobiliza-se lentamente na claridade
líquida da cidade
e fosforesce em contraluz.

Fonte: Site Eduardo Pitta - Poemas

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