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Temos que baste: a pátria à janela
e a vontade na cama.
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Nunca me tinhas dito: um quarto assim
— um quarto cheio de nuvens, tapetes
persas, apetites, laliques.
O tecto muito verde, a cama muito
alta, o espelho muito fundo.
Foder-te tudo: a paisagem,
o buraco, a esplêndida tesão.
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Ardias devagar.
Cercaram-te então de abetos
por todos os lados.
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Houvera ali um rosto
muito belo, mal disfarçado
na teia geométrica
de uma finíssima máscara.
Sulcos de um antigo
ardor.
Tranquilo e arbitrário
desapego.
A luz baixou tanto.
Aquele rosto é
um mapa: um mapa
crivado de cidades saqueadas.
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De noite morremos. Um lapso, um
só vislumbre
recuperam-nos do vórtice. O ilu
minado caminho das trevas
absorve-nos. Sobre
vive-nos o conhecimento. Na boca
de Prometeu não foi vão o grito
de Ésquilo.
Atroz sabedoria.
Tudo nos surpreende, desam
parados, nesse langor, nesse corpo
a corpo com o silêncio mais audível.
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Estradas muito claras, o desenho nítido
e longas o bastante para o tempo
que sobrava.
O incêndio ficava para depois
para mais tarde
nos dias de aborrecer
o tédio.
Entre o desencanto da escola,
a injúria de alguns, a praia de ao pé de casa,
um Rilke adolescente, as primeiras
exigências do corpo e o ritual
do mah jong, fomos cumprindo
o equivocado itinerário
de uma sobressaltada adolescência colonial.
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A noite toda a selva
dissolvendo-te em sândalo
e esquecimento.
Casas, degraus a prumo, águas
despedaçadas. Equilíbrio precário
num fio de luz.
Sob uma lâmina de mica
um veneno espera por nós
em Trieste.
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Nunca se deteve nas Escrituras.
Gostava de caminhar ao lado da noite
deter o falcoeiro
guilhotinar a interceptada luz
fazer da sede um vidro de passagem.
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Está um rapaz a arder
em cima do muro,
as mãos apaziguadas.
Arde indiferente à neve que o encharca.
Outros foram capazes
de lhe sabotar o corpo,
archote glaciar.
Nunca ninguém apagou esse lume.
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Esse mundo acabou,
sobrevive-lhe o eco de
algumas vozes.
O homem que erra de cidade
para cidade
conhece a voracidade dos espelhos
o brilho ácido da cal
o reiterado equívoco das marés.
E sabe, soube sempre
que a casa já lá não está.
Nem a casa nem a memória
que quiseram que tivesse.
Varrido por um sopro insaturável
o olhar vacila, acossado
entre ruínas
e a traficada solidão.
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Eu vi o tédio atravessar o tempo
atribulado da infância
e espelhar-se naquele rosto
ainda de menino. A cicuta,
o medo, tanto desamor
submerso na água de olhar.
Não tem memória. É de outros
a vontade, o apelo, a boca
acesa ao interdito. Vertigem
alguma o perturba. Mãos rudes
fixam-lhe o perímetro da pele,
secreto desígnio.
Imobiliza-se lentamente na claridade
líquida da cidade
e fosforesce em contraluz.
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